A filósofa Djamila Ribeiro dá a real sobre bem-estar (“Não pode ser um negócio de rico”), pandemia (“Tava bebendo demais”) e amor (“Uma mulher negra sendo amada causa estranhamento”)
Djamila Ribeiro não tá aqui pra atender às expectativas de ninguém.
Ela é filha de Oxóssi e mestre em filosofia. Professora universitária da PUC de São Paulo e influenciadora digital com mais de 1,2 milhão de seguidores no Instagram. Confessional em Cartas para Minha Avó e acadêmica em Lugar de Fala. Feminista negra e garota-propaganda da Prada. Reikiana nível 2 e best seller número 1 – seu Pequeno Manual Antirracista foi o livro mais vendido no site brasileiro da Amazon em 2020.
Mas esse negócio de não atender às expectativas pode ser puxado.
“Tô cansada”, revelou em entrevista à Mina. “Quero provar o quê? Pra quem? E isso de ter que fazer um milhão de coisas? Agora quero olhar para mim. Não é egoísmo olhar para mim.” Ao contrário, ela continua, olhar pra si deveria ser um direito de todos e não um privilégio de poucos: “É muito importante ver o autocuidado como algo coletivo, que deve ser mais democratizado, que é fundamental para a nossa sobrevivência”.
Djamila Ribeiro não tá mesmo aqui pra atender às expectativas de ninguém.
Em Cartas para Minha Avó, você escreve: “Não perco mais as oportunidades de cuidar de mim, fazer isso é um modo de honrar você”. Como foi entender que merecia se cuidar?
Foi um processo longo e difícil. Cresci ouvindo que mulher negra é guerreira. Até que ponto isso é verdade? Não queria nem ser guerreira e nem me subalternizar, só queria ser humana, com toda a complexidade isso envolve: aceitar as fraquezas, as vulnerabilidades. Minha avó e minha mãe não cuidaram de si mesmas porque não puderam fazer isso, tinham que se preocupar com a sobrevivência delas e com a nossa. Isso não devia ser naturalizado.
Como encarar a própria vulnerabilidade? O candomblé me ajudou muito. Sou iniciada desde criança, mas fiquei muito tempo longe. Quando retornei, olhei pros arquétipos que as orixás femininas trazem. Tem um itã [narrativa mítica] de Oxum que diz: “Antes de cuidar dos seus filhos, Oxum limpa suas jóias”. Isso ensina a olhar para si. Não é porque você é mãe, que precisa se abandonar. As matrizes africanas olham o feminino numa outra perspectiva.
Você escreveu que você tinha pavor de ser “mulherzinha”. Fui criada pelo meu pai pra ser independente, o que é ótimo. Mas eu olhava como uma dicotomia: se sou isso, não posso ser aquilo. Via a minha mãe, dona de casa, e falava que jamais seria como ela. Queria trabalhar fora… Virei mãe, envelheci e entendi como o cuidado foi fundamental na minha vida: se o meu pai me incentivou a estudar, foi minha mãe quem arrumou meu cabelo, cozinhou pra mim e lavou o meu uniforme.
A maturidade me ajudou a fazer as pazes com o Feminino, a olhar esse feminino como potência
Fazer 40 anos também mexeu nisso? Escrevi o livro com 40 anos, tô com 41. A maturidade me ajudou a fazer as pazes com o feminino, a valorizar o papel da minha mãe e da minha avó na minha vida. Muito do que sou, devo a elas. Celebrar esse feminino foi importante pra entender que também sou a pessoa que chora, que gosta de cuidar das plantas, que gosta de ficar em casa com a filha. Comecei a olhar esse feminino como potência.
Ficou mais generosa com você mesma? Tô muito mais tranquila em me aceitar, com meus desafios. Tive uma formação muito dura, minha mãe foi brutalizada pela vida. Cresci numa família em que era praticamente impossível errar: “Você é negra, não pode errar ou a sociedade vai te punir”. Entendo por que minha mãe fez assim, mas é duro. A gente cresce com medo, infelizmente.
Errar é um privilégio branco, você já disse. Foi difícil transcender isso, fiquei muito nessa pira. Na faculdade, tinha que ser a melhor, tinha que provar que merecia estar ali. [Suspira] Tô cansada. Quero provar o quê? Pra quem? E isso de ter que fazer um milhão de coisas? Tava seguindo o que diziam que tinha que seguir, mesmo criticando. Agora quero olhar para mim. Não é egoísmo olhar para mim. Mergulhar nessas memórias me trouxe esse lugar. Foi muito doloroso escrever esse livro, chorei muito.
Você faz ou já fez psicanálise? Fiz e foi muito bom. Um ano e pouco de terapia, quando meus pais faleceram, um atrás do outro… [Djamila tinha 20 anos quando a mãe, dona Erani, morreu de câncer no rim; um ano depois, morreu o pai, seu Joaquim, câncer de medula.] Hoje, faço terapia holística. Apometria, que é tipo uma ressonância magnética do seu emocional, e reiki. Sou reikiana nível 2, me aplico todos os dias, aplico nas pessoas. Isso é fundamental pro meu bem-estar, pro meu autocuidado.
Curioso que você voltou pro candomblé quando fazia mestrado de filosofia, um lugar de razão, com pouca abertura à espiritualidade. Tava em busca de um lugar em que me sentisse bem, queria um terreiro em que me sentisse bem.
Você se sentia deslocada no mestrado? Muito, me sentia sozinha. A academia foi muito hostil. Era a única aluna estudando Simone de Beauvoir, era a moça que estuda gênero. Fiquei num não-lugar. Um dia descobri no google a Simone de Beauvoir Society [fórum internacional de pesquisa sobre a pensadora francesa]. Tive que ir pra fora encontrar referências.
Ninguém estranha estudar filósofos judaico-cristãos, como Kierkegaard ou Espinosa, mas se entra candomblé… A gente estuda escolástica, com São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, e isso não é uma questão. A filosofia ensinada no Brasil ainda é muito eurocêntrica. Isso é coisa de quem não entendeu nossas matrizes: no candomblé não tem essa dicotomia entre razão e emoção. Não é só “penso, logo existo”, também é “sinto”. A gente vem de outra geografia da razão. Pra nós, não é problema o sentir estar aliado com o pensar, com a dança, com a música. É uma coisa só.
Sempre quis ser popular. Chegar lá no Grajaú [periferia de São Paulo] e ver as meninas de 13 anos com o meu livro na mão é o que eu queria
Tentam enquadrar o candomblé na lógica ocidental Falta esses intelectuais entenderem o que dizemos quando propomos epistemologias do terreiro. A própria discussão sobre o feminino… Quando as pessoas falam que feminino é submisso. Bom, dentro da perspectiva ocidental, né? As deusas iorubás não têm nada de submissas, Iansã não tem nada de submissa. Oxum tá em casa, mas os saberes da casa são valorizados. A gente tem muito a ensinar às teóricas que só vêem o feminino pela submissão. Feminino é um lugar de poder.
O feminino como potência. Quando se olha pela potência, também se recusa o lugar de objeto. A gente só reage como sujeito da história. Gosto muito quando a Lélia Gonzalez traz a perspectiva da mãe preta. Sim, a mãe preta foi um lugar imposto para muitas mulheres negras que tiveram que ser babás, mas a mãe preta é quem vai ensinar as primeiras palavras pra criança branca, vai ensinar o pretoguês. A mãe preta também tem poder. Nossa história não é só opressão. É uma história de sujeitos que constroem a história e trazem dentro dessa história o amor. Tudo que viam como negativo, a gente traz como potência.
Você é uma das pensadoras mais conhecidas do país, mas uma parte da academia torce o nariz pra quem rompe o muro da universidade. Sim, sou professora e tenho que fazer certos enfrentamentos. Sempre quis ser popular, vim do povo. Chegar lá no Grajaú [periferia de São Paulo] e ver as meninas de 13 anos com o meu livro na mão é o que eu queria. Fazer eventos com empregadas domésticas é o eu queria. Me emociono muito quando chego nesses lugares e vejo pessoas como a minha mãe, como a minha avó.
Você se reconhece ali. Exatamente, cresci com essas pessoas. Um podia ser meu tio, outro, meu primo. Falei pra 2 mil pessoas no Acre, pra 3 mil no Ceará. Quando fui a Mossoró [no interior do Rio Grande do Norte] tinham 2 mil pessoas, foi muito marcante pra mim. No dia seguinte, fui pra Apodi e os alunos do ensino médio tavam estudando o meu livro. Voltei chorando…
Dá pra ter 1,2 milhão de seguidores no Instagram e fazer o Brasil entender termos complexos como “racismo estrutural” e “lugar de fala”. “Lugar de fala” é um conceito que se popularizou muito no Brasil, né? As pessoas falam de “racismo recreativo”… Acho que elas se apropriaram desses temas por conta da coleção Feminismos Plurais, a gente tá indo para o 11º título, com linguagem e preço acessíveis. Hoje custa 20 e poucos reais. Vender livro barato era muito importante pra mim.
Essas expressões não são mais só de especialistas. Era isso que a gente queria. Autores negros e negras que chegaram no povo e também estão na bibliografia de cursos na USP, de tudo que é universidade. É importante frisar que queria pautar a academia, passei minha graduação e mestrado sem ter acesso a esses livros.
Autocuidado é fundamental. Até brinco que queria fazer uma campanha: “Massagem é cura, não é frescura”
Audre Lorde escreve no epílogo de Uma Explosão de Luz: “Cuidar de mim não é autoindulgência, é autopreservação”. Como tudo numa sociedade capitalista, o autocuidado pode ser esvaziado. Mas não vamos partir do esvaziamento, vamos partir daquilo que é. Autocuidado é fundamental. A Audre Lorde dizia: “Como vou viver numa sociedade patriarcal e racista se não cuidar de mim?”. Até brinco que queria fazer uma campanha: “Massagem é cura, não é frescura”. É importante ver o autocuidado como algo coletivo, fundamental pra nossa sobrevivência e que deve ser mais democratizado.
Como democratizar o bem-estar num país tão desigual? É muito difícil, apesar da gente ter no SUS dezenove terapias complementares, como reiki e acupuntura. É uma política pública. Autocuidado não é algo meramente individual. São técnicas ancestrais de cura, como massagens que vêm de povos asiáticos e africanos. Reflexologia é uma técnica milenar. Chega aqui e vira um negócio de rico, massagem em geral custa uma fortuna. Tem que quebrar essa lógica. Tem várias terapeutas que atendem a preços populares.
A pandemia fez muita gente pensar mais em autocuidado. Pra mim, o lado bom da pandemia foi ter sido forçada a parar. Tava num ritmo muito insano de trabalho. Em 2019, participei de 174 eventos, uma loucura. Terminei o ano estafada. Os três primeiros meses da pandemia foram muito difíceis. Eu tinha muita incerteza: como vai ser, como vou pagar as pessoas, como vou trabalhar? Por outro lado, fui forçada a olhar para mim. Olhar para si não é muito gostoso, você encontra coisas que não gosta, por isso tanta gente prefere não enfrentar isso. Melhor fingir que não tá acontecendo nada.
É fácil se distrair com os ruídos do mundo. Quando esses ruídos diminuem, você tem que olhar para si. Foi um mergulho profundo em mim mesma, muito difícil. Em compensação, me apropriei mais de mim mesma, de quem eu sou. Redefini minhas prioridades na pandemia. Não quero mais ter que fazer tudo pra todo mundo. Comecei a me priorizar, aprendi a dizer não.
Chegou a ter um burn out? Não. Comecei a beber muito, tava bebendo demais. Chegou um momento em que falei: chega. Fiz um detox de meses sem beber, pra reorganizar minha vida sem procurar saídas mais fáceis.
Muita gente abusou da bebida durante a pandemia. Percebi que tava bebendo todo dia. “Ah, vou beber porque trabalhei demais”, “ah, vou beber porque tô muito cansada”. Tenho que ter o controle, não posso ser controlada. Estipulei regras como só beber no final de semana, voltar a me exercitar, meditar todos os dias. Fui fazendo aquilo que realmente gostava e que adiava por causa do trabalho.
Mulher negra não pode ser só dor. Às vezes vendo muito uma performance de ativismo, mas é importante mostrar momentos felizes.
Mas suas redes sociais sempre tiveram fotos que parecem uma afirmação da alegria: você na piscina, viajando pelo mundo… Feministas negras trazem isso, cuidar de si e celebrar a vida. Eu não era assim, né, mas o candomblé tem a festa e os orixás vêm dançar junto. Mulher negra não pode ser só dor. Às vezes vendo muito uma performance de ativismo, o tempo todo lutando, dedo em riste. Mas você não deixa de ser humana, é importante mostrar momentos felizes.
A escritora Grada Kilomba fala da “liberdade de ser eu”. É uma amiga muito querida, psicanalista também, e me ajuda muito nesses meus processos. Vá desfrutar da vida. Um monte de mulheres me escrevem, brancas e negras, falando “acho tão legal você mostrar que é possível se divertir”. Aí me marca em foto na praia, me marca tomando uma com as amigas. A gente também tem direito de desfrutar do mundo.
Fazer publicidade pra uma marca de luxo como a Prada provoca um curto-circuito? Causa, né? Tem muita reação negativa e positiva. Gosto de desestabilizar o que se espera de uma mulher negra, ativista e escritora. Colocam a gente numa caixinha. Independente de ser ativista, sou uma pessoa e tenho direito a minhas escolhas. Homens brancos não sofrem tanta pressão. Se você é uma mulher negra, sempre vem um “você tem que…”. Beauvoir fala do destino que é criado pras mulheres. Gosto de cortar esse destino. As reações negativas já são esperadas desde quando eu tinha 6 anos e jogava xadrez: “Faz xadrez e não tá na escola de samba?”. Era isso que meu pai ouvia. Então, frustrar expectativas vem desde criança se você é uma pessoa negra.
Isso não mudou muito. O livro conta que você tava com sua filha, quando alguém disse algo como “nossa, ela vai ser a próxima Globeleza”. Vai demorar muito pra mudar essa mentalidade, é estrutural. Mas é importante frustrar expectativas. Frustrar expectativas não é novo para mim, novo sou eu na Prada. Também tem muita reação positiva, o tanto de mensagens que recebi de mulheres emocionadas por me ver nesse lugar. Frustrei expectativas quando fiz faculdade sendo mãe, quando publiquei um livro, quando lancei livro no exterior. Isso é frustrar expectativas.
Outra expectativa que você quebra é estar num relacionamento interracial num país racista. Às vezes as pessoas levam pra um lugar, tipo, não pode… Entendo. O pai da Thulane é um homem negro, fomos casados por 13 anos e nunca foi uma questão. Nada contra quem politiza esse debate, apesar de eu nunca politizar meus relacionamentos. Nunca fui de ficar postando de relacionamento, prefiro deixar mais reservado. Acho importante, sim, pessoas negras estarem juntas numa sociedade como a nossa. O amor pode, sim, ser condicionado. As pessoas são condicionadas a amar pessoas brancas. Por outro lado, não é um determinismo. Existem pessoas num relacionamento interracial que simplesmente se amam e estão felizes juntas.
Uma mulher negra com um homem branco é olhada diferente de uma mulher branca com um homem negro? Ah, com certeza. É muito mais comum uma mulher branca com um homem negro. Pelas estatísticas, mulheres negras são mais sozinhas. Elas não são vistas como mulheres pra serem amadas. Então, quando tão num relacionamento, são olhadas com incômodo, tanto por pessoas brancas como negras. Uma mulher negra sendo amada, num relacionamento interracial ou não, causa estranhamento.
Discordo de quem acha que cabelo alisado é alienação. A mulher pode estar num processo de se entender.
Você cresceu numa vizinhança branca. Sua filha enfrenta o mesmo? Na escola, são poucas adolescentes negras como ela. Mas acho que a Thulane lida muito mais tranquilamente com essas coisas, porque é de uma geração muito mais antenada que a minha. As amigas dela tão discutindo feminismo aos 15, 16 anos. A Thulane nunca quis alisar o cabelo, gosta do cabelo dela crespo, se acha bonita. São coisas que só consegui depois de adulta.
Você implorava pra alisar o cabelo. E meu pai, militante, não deixava. Tive que passar por alguns enfrentamentos pra minha filha não passar, assim como minha mãe enfrentou coisas pra que eu não enfrentasse. A Thulane tá com o cabelo crespo agora, de vez em quando põe trança, cuida, hidrata. Tem muito mais afeto com ela mesma do que eu tinha.
Quando fez as pazes com o seu cabelo? Não parei de alisar por conscientização, não. Foi porque engravidei da Tulane e não pode usar química durante a gravidez. Fui forçada a parar de alisar. Nesse processo, redescobri meu cabelo, sua textura… Comecei a gostar e nunca mais alisei. Por isso digo: “Não se culpem, é um processo”. A maternidade me fez mudar essa chavinha, não queria que minha filha passasse pelo que passei. Meu pai segurou o máximo que pode, mas na adolescência fui pro salão alisar.
E a reação dele quando viu seu cabelo liso? Não me lembro exatamente… Mas ele vivia criticando, dizendo que eu passava veneno no cabelo. Aquelas químicas da época ardiam, faziam ferida, tinham cheiro muito forte. Ele olhava com reprovação e eu falava: “Ah, não é o senhor que é zoado na escola”.
Usando um verso da Audre Lorde: o seu cabelo ainda é político? Com certeza. Numa sociedade como a nossa, em que o racismo tem um papel preponderante na construção do belo, assumir nosso cabelo, nossos traços, é um ato político. Agora, como ativistas não podemos apontar o dedo pra quem alisa o cabelo. Discordo de quem acha que cabelo alisado é alienação. A mulher pode estar num processo de se entender. E assumir o cabelo tem consequências: ela pode perder o emprego, ser apontada na rua, discriminada. Nos Estados Unidos, várias mulheres que usam lace e alisam porque gostam, não por imposição estética. Se a mulher branca pode alisar, cachear e fazer tudo, por que nós não podemos?
Comentarios